19 de mar. de 2007

ZENTREVISTA - Dra. Elaine no Jornal Zen

“Preta, pobre e petulante”. A autodefinição é sugestiva das dificuldades enfrentadas por Elaine Pereira da Silva para conseguir o tão sonhado diploma de Medicina. E que dificuldades! Criada na periferia de São Paulo, filha de pedreiro e empregada doméstica, alcançou seu objetivo mesmo contra todos os prognósticos. Uma vitória pessoal de Elaine, que desde cedo tinha o desejo de ser médica, para ajudar as pessoas a se livrar da dor. Mal sabia ela que teria de senti-la na carne e na alma. Então sem condições de pagar uma universidade particular ou um cursinho, decidiu fazer um curso mais barato – Biologia. Conseguiu se formar, apesar de dormir na maior parte das aulas – um dos sintomas da neurocisticercose, doença causada por larvas presentes na carne de porco. Prestou concurso do Estado e tornou-se professora. Com o salário maior, decidiu resgatar o sonho de se tornar médica. Com muita dificuldade, fez dois anos e meio de cursinho e prestou o vestibular. Passou na Unesp, Santa Casa e Unicamp. Optou pela última, onde morava de graça e recebia uma bolsa. Negra, pobre e introvertida, Elaine teve a situação agravada em 1993, quando estava no 5º ano de Medicina. Nessa época, foi internada pela primeira vez e ficou quatro dias em coma. Só então teve seu problema definitivamente diagnosticado. Ela conta que “enlouqueceu”, acabou em cadeira de rodas, passou por três cirurgias e quase morreu. Ao todo, foi internada 18 vezes. Ao fim de nove anos, finalmente conseguiu o tão sonhado diploma e superar a doença. Aos 44 anos, depois de trabalhar na rede pública de saúde, Elaine convive com seqüelas, como fortes dores. Mas nada que impeça de assistir, de forma voluntária, crianças e adultos de uma favela de Campinas – promessa feita a Deus nos anos de cursinho. Nesta entrevista exclusiva ao JORNALZEN, Elaine conta um pouco de sua trajetória, marcada pela pobreza, humilhação e preconceito, mas principalmente pela superação.

JORNALZEN – Depois de tudo que a sra. passou, como se sente hoje, estando em evidência, sendo até entrevistada no programa de Jô Soares, na Rede Globo?
Elaine – Sinto-me muito feliz por estar podendo fazer do limão uma limonada. Minha história foi complicada, bastante difícil, mas tive a grande salvação da humanidade. Tive amor de pouquíssimas pessoas, que fizeram toda a diferença. Tive Deus e dois amigos. Por eles, não me matei e estou de pé. Se não tivesse sido amada pelo Dr. Jamiro [referindo-se ao médico Jamiro da Silva Wanderley] e pelo Dr. Fabrício [referindo-se ao médico Fabrício Caneppele], meu pai e meu irmão brancos, não teria agüentado tudo que agüentei. Hoje, eu prego contra o suicídio, a favor do amor, da amizade, sonho, luta, verdade, esperança. Prego a resistência, com, sem e apesar de tudo. Sempre existe o dia seguinte, mesmo que demore 13 anos, como foi no meu caso.

JORNALZEN – Em seu livro Pérola Negra – História de um Caminho, a sra. descreve todo o sofrimento com sua doença e a discriminação que sofreu por ser negra, pobre e aluna de medicina. Porém, também encontrou muitos que a ajudaram.
Elaine – Conto no livro de um senhor que me viu chorando quando eu não tinha dinheiro para comprar o remédio que a médica me receitou. Ele me deu 30 reais para que eu comprasse. Fiz questão de anotar o nome dele mesmo sem saber que um dia eu escreveria um livro. E coloquei o nome dele [Valter J. Bortolotto]. Assim como ele, que nunca mais vi, e com outros que tenho contato até hoje, a eles devo tudo. Os poucos que me amaram foram mais fortes que os muitos que não me amaram. Drummond fala que o amor vence o tédio, restaura a pobreza e instaura em nós a imperecível alegria. Eu sou uma mulher de frases, e essa é a frase da minha vida. O amor é a panacéia, a salvação para todos os males da humanidade. Tudo que há de ruim no mundo é a falta de amor. Tudo que há de bom é presença de amor. É o amor que salva as pessoas e é a falta dele que as mata as faz matarem as pessoas. Pensei em suicídio por três anos, por causa de uma dor de cabeça insuportável. Hoje, digo o seguinte: suicídio, a gente sempre deve deixar para amanhã, porque o amanhã nunca chega. No amanhã, as idéias suicidas perdem o sentido. Hoje, dou graças a Deus de estar aqui, pois posso ter algumas alegrias, posso fazer meu trabalho voluntário na favela. Escrevi um livro e, através dele, faço outras pessoas refletirem.

JORNALZEN – Qual o peso de ser mulher, negra, pobre e médica no Brasil?
Elaine – Sempre digo que sou “PPP” – preta, pobre e petulante. O fato de ser mulher pesa. O fato de ser pobre pesa mais. O fato de ser negra pesa ainda mais. E o fato de ter ficado louca, em função de uma lesão cerebral causada pela neurocisticercose que tive, pesa muito mais. Quanto a ter me formado médica, diria que a medicina é uma profissão de elite. Não é para negros nem para pobres, muito menos para ex-doentes mentais. Sou uma médica com “graves defeitos”: sou negra, pobre, ex-louca e honesta. Quando estava no cursinho, pedi a Deus que me ajudasse a entrar em medicina na Unicamp, onde só entra branco e rico, e prometi que atenderia as pessoas pobres. Ele estava de plantão no céu nesse dia, e também no dia em que fui parar na UTI, e disse: “Você vai passar poucas e boas, mas um dia vai cumprir a promessa que me fez”. E porque Deus queria uma médica na favela da Vila Brandina, onde faço meu trabalho voluntário há nove anos, é que estou viva ainda. É muito complicado quando se tem tantos estigmas a vencer. Não posso dizer que os venci. Eles existem, são muito fortes. Mas eu os transcendi. Para que a gente melhore nossa sociedade, é preciso que as pessoas tenham coragem de se pronunciar. Esses dias, li que o que mais preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons. Mais do que fazer a nossa parte, a gente tem que alardear o que é certo. Não dá só pra ser honesto e ficar quieto. A gente tem que cultivar e cultuar a bondade e o amor nesse planeta, porque o que a gente vê é o culto à mentira, ao roubo. Eu acredito, como dizia minha mãe, que a honestidade deve ser bandeira permanente, mesmo que para quem seja honesto seja mais difícil vencer, e é. Apesar disso, temos de nos apegar a essa bandeira. É por causa da falência da bandeira de paz que foi arrastado e morto um menininho de 6 anos. O importante não é ter. É ser. Por que tantas meninas têm morrido de anorexia? Por causa do culto à forma em detrimento da essência. Os valores estão invertidos. Precisamos nos unir para mudarmos isso. Essas bandeiras, que são tantas, transcendem os “PPP”. É por toda a humanidade.

JORNALZEN – Costuma-se acreditar e dizer que não existe racismo no Brasil. O que teria a nos dizer a respeito?
Elaine – Quem leu meu livro sabe o que é racismo no Brasil. Lá, vão encontrar vários exemplos. O racismo é enorme no Brasil, mas é mitigado. É disfarçado. Por isso, meu livro pretende ser iconoclasta. Quer derrubar ou no mínimo abalar o mito da democracia racial no Brasil. O racismo é muito grande, mas, como em toda sociedade hipócrita, é sutil. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde a coisa é escancarada, as pessoas se armam contra e, assim, podem se proteger tanto emocionalmente quanto legalmente. No Brasil é sutil, então há brancos e negros que o negam, a maioria por hipocrisia, alguns poucos por ignorância mesmo. O negro só descobre o tamanho do racismo quando se expõe. Minha mãe, por exemplo, nunca foi discriminada em seu trabalho de empregada doméstica, enquanto eu, como médica, sempre fui – sutilmente, claro. O negro serve para o trabalho físico, mas não para o intelectual. Para conseguir uma vaga num emprego, tem que ser melhor que um branco. Se for igual, a vaga será dele. Então, acho que a gente tem de saber que existe para poder lutar contra. O mal, a gente só combate quando sabe que ele existe. Estou fazendo a minha parte, denunciando em quaisquer níveis que me dêem voz.

JORNALZEN – Com tudo o que a sra. passou , o que a fez alcançar o seu sonho?
Elaine – Principalmente, a persistência. Há um provérbio chinês que diz o seguinte: “Um punhado de paciência é mais importante que um barril de talentos”. Pensei em desistir milhões de vezes, mas, como escrevo no meu livro, a palavra desistir não existe no meu dicionário de vida. E por não saber como se fazia para desistir, continuei. Foi por absoluta garra, empenho, apesar de todos os pesares, contra todas as expectativas de quase o mundo inteiro. Quase todos acharam que eu não iria conseguir. Primeiro, nunca iria entrar em medicina, muito menos numa universidade estadual. Pois eu entrei em duas: Unicamp e Unesp. Depois de já ter me formado em biologia. Então, no 5º ano, eu vou para a UTI e fico louca, e todos pensaram que nunca mais seria médica. Mas eu digo que nunca é tempo demais para quem tem Deus no céu e trabalho na terra. Não há lesão cerebral que segure. Se você tiver muita fé, muito trabalho e muita paciência, consegue chegar onde quiser.

JORNALZEN – Quais são os seus planos daqui para frente?
Elaine – Digo que meu primeiro livro quem escreveu foi Deus, porque foi a minha trajetória até aqui. A pérola é uma agressão que entrou na ostra e, para se defender, ela cobre com mantos de naca o que entrou, que pode ser, por exemplo, um pouco de areia. Aquilo vai se cristalizando e forma uma pérola. Existe um pensamento que diz que ostras que não foram agredidas não produzem pérolas. Por isso, Pérola Negra é um título perfeito para mim. Por sugestão de meu amigo Jamiro, quero escrever sobre uma utopia, onde não vou contar o que eu vi e, sim, o que não vi. Sobre como seria um mundo correto. Talvez o título será Pérola Negra Sonha um Novo Caminho.

JORNALZEN – Que mensagem deixaria para nossos leitores?
Elaine – Essa história de que mulher, negro e homossexual são inferiores é um estereótipo imbecil. Conheço pobres e ricos maravilhosos, pobres e ricos medíocres, analfabetos e doutores idem; brancos e negros idem. Os valores são morais. O que importa, o que realmente afeta o mundo é o coração e o cérebro das pessoas, e o que elas fazem regidas por eles com suas mãos.

Fonte: www.jornalzen.com.br

6 comentários:

Anônimo disse...

Impressionate é a história de vida de Dra. Elaine. Nadando contra a corrente ela foi mais longe do que muitos que têm tudo a seu favor. Uma vida plena de fé apesar dos percalços. Que Deus ilumine esta mulher, sempre.

Elaine Pereira da Silva disse...

Muito obrigada pelas palavras carinhosas, Lunas! Querendo, escreva pra mim, através do site: www.perolanegraeventos.com e, com certeza, eu responderei. Se estiver no Orkut, venha participar da comunidade: "Dra. Elaine Vencedora da Silva". Os membros da comu são avisados sobre todos os passos da divulgação do livro. Um abraço afetuoso! Dra. Elaine.

Anônimo disse...

É mesmo muito impressionante a história de Elaine, muito bonita,uma história assim, nunca vi antes, Ela é a prova que qualquer um pode ser o que quiser da vida,apesar de todos os problemas que cada pessoa passa, tudo é possível!
Doutora Elaine, você é uma guerreira mesmo!

Elaine Pereira da Silva disse...

Muito obrigada por palavras tão carinhosas! Se quiser, escreva pra mim, através do meu novo site: www.doutoraelaine.com e aguarde minha resposta. Um abraço! Elaine

Anônimo disse...

Sua historia é surpreendente !parabens por ter enfrentado td isso

Anônimo disse...

Sua historia é surpreendente !parabens por ter enfrentado td isso